terça-feira, 23 de abril de 2013

Relacionamentos

O julgamento do que observamos reduz ou distorce a capacidade de percepção. Faz com que formulemos expectativas equivocadas que, por sua vez, respondem por muitas de nossas frustrações. Quando acontecem no convívio com as pessoas adotamos atitudes e comportamentos de queixas, reclamações e cobranças. Com esse cenário fica praticamente impossível cultivarmos as afinidades em nossos relacionamentos que permitem aumentarmos ou conservarmos as amizades, bem como irradiarmos uma influência harmoniosa através de nossas ações, palavras e pensamentos.

JULGAMENTO

Julgamento, no caso, não corresponde a condenação.  É o que achamos em relação ao que observamos, trata-se de opinião proveniente de nossas conjeturas e avaliações.
  Quando observamos e ao mesmo tempo fazemos um discurso interior prejudicamos nossa percepção. Há perda da referência com a realidade do mundo exterior e a percepção expressa nossas construções interiores.
Ao observar uma flor, por exemplo, podemos adotar uma de duas atitudes.
Podemos focar nossa atenção na flor e, sem qualquer discurso interior que pretenda expressar nossa opinião, abrirmos nossa percepção visual e perceber em detalhes as formas, cores, tamanho e outras características presentes. Se houver perfume nossa percepção olfativa seguirá a mesma orientação de dispensar o julgamento.
A outra atitude é observar a flor e ao mesmo tempo elaborar discurso interior no qual registramos: a flor é vermelha, grande, com muitas pétalas, há outras flores na mesma planta, o seu perfume é acentuado, agradável e faz lembrar cenas já vividas.
A observação da flor acompanhada de julgamento faz com a percepção corresponda a idealização que fazemos dela e às emoções e sentimentos que acontecem em nosso íntimo. Sem julgamento, permitimos que a flor “diga” para nós o que ela é verdadeiramente.

COMO PINTAR UMA ÁRVORE

Certos artistas chineses ao pretenderem reproduzir, por exemplo, uma árvore em suas telas de pintura dedicam longo tempo na observação do objeto de seu interesse.
Se dão por satisfeitos, para iniciar a pintura, no momento em que percebem haver integração plena entre eles e o que observam, o pintor e árvore formam uma unidade. Pintam o que a árvore é no lugar daquilo que possam pensar que ela é.

PERCEPÇÃO NOS RELACIONAMENTOS

 As nossas expectativas em relação às pessoas são criadas segundo a qualidade de nossas percepções. As expectativas, nos relacionamentos, representam o que esperamos das pessoas ou aquilo que pensamos que podem nos oferecer. Quando fixadas com suporte em percepções equivocadas deixam de acontecer e como resultado surgem as frustrações.
Além da percepção deficiente as expectativas também deixam de ser atendidas por serem desconhecidas, é comum o pressuposto de que o outro tem obrigação de saber o que esperamos em nossos relacionamentos. Entretanto, esse aspecto também não deixa de ser uma deficiência de percepção. Não que haja obrigação de saber quais são as expectativas “secretas” e sim porque achamos que outro sabe e não atende porque não quer.
A propósito das expectativas, quanto mais tivermos maiores serão as possibilidades de colecionarmos frustrações em nossos relacionamentos.

COBRANÇA

A frustração nascida das expectativas que deixam de ser atendidas redunda em cobranças.
É comum nesse processo de cobrança, em muitas oportunidades, o outro até ficar surpreso. Mas por que está me cobrando isso? Eu não prometi fazer essas coisas!
Por outro lado, o cobrador pensa e até expressa a sua decepção: “nunca imaginei que você seria capaz de tanta desconsideração, você mudou muito, não é mais a pessoa que conheci.”.
Como já ressaltado nem sempre fazemos o outro conhecer quais são nossas expectativas. Achamos que o outro tem a obrigação de saber o que nós esperamos.
Isso é muito frequente, por exemplo, nos casamentos.
Os namorados na fase que antecede a convivência diária elaboram suas expectativas e por que não dizer muitas verdadeiras fantasias. Deixam de explicitá-las por diálogos transparentes, ficam cobertas pelo pressuposto de que o outro é obrigado a saber.
A percepção favorável que motivou a vida conjunta, nascida em grande parte de julgamentos equivocados, aos poucos se modifica. Começam a surgir novas perspectivas que também podem representar percepções ainda equivocadas.
O cobrador pensa e até expressa a sua decepção: puxa vida nunca imaginei que você fosse mudar tanto, que fosse me tratar dessa forma.
Nada mudou simplesmente a outra pessoa passa a ser percebida de maneira diferente. Pode não ser uma percepção correta, mas outra igualmente equivocada.

SÓ EXISTE NA MENTE DO OUTRO

Atualmente é comum ouvirmos referências sobre a “realidade” de mundos virtuais. Será possível os relacionamentos acontecerem segundo a “realidade” de um mundo virtual?
Na relação entre pessoas, em razão de percepções equivocadas, cada um pode criar um perfil do outro que corresponda à sua percepção e não aos verdadeiros atributos da personalidade.
As pessoas reais não estão se comunicando, há relacionamento entre essas fantasias, ou seja, o que cada um acha que o outro é como base em suas percepções equivocadas.  É um relacionamento de duas criaturas virtuais que não existem, estão presentes apenas nas respectivas mentes.
Essa condição é ressaltada por Ermance Defaux eu seu livro “Mereça ser feliz”: “Um coração amigo em um momento de atribulação íntima discutia celebremente com as imagens mentais que formulava a cerca de um ente querido de sua convivência. Envolvido em suas mentalizações discutia, revidava e era tão descontrolado em seu estado emocional que gesticulava sem se dar conta que as pessoas a sua volta lhe observavam, uns com preocupação outros com chacota. Ele estava em plena fila de um banco para quitar uma conta de telefone.” Ainda segundo Ermance: “O problema não é como convivemos com o outro, mas sim como convivemos com o que sentimos e pensamos em relação ao outro.”.

DESENVOLVER A PERCEPÇÃO

Para melhorar a percepção podemos treinar a visão, audição, paladar, tato e olfato. Há muitas oportunidades em nosso cotidiano que podem ser aproveitadas para essa capacitação. Ao atribuirmos importância à percepção será natural o uso de nossos sentidos com maior acuidade.
O potencial de desenvolvimento da percepção pode ser notado em alguns exemplos. O mecânico percebe pelo ronco do motor o reparo necessário, o provador de café, vinho e de outras substâncias permite estabelecer complexas classificações de tipos e procedência. A pessoa desprovida de visão amplia consideravelmente a sua percepção pelo tato. O treino ora recomendado tem como objetivo:

“desenvolver a percepção pela eliminação de julgamentos enquanto durar a observação.”

O treino pode acontecer através de exercícios estruturados. Podemos escolher objetos ou cenários como uma flor, árvore, um parque, opções que representem de preferência beleza, harmonia, descontração, bem estar.
Exemplifiquemos. Observe uma flor como uma câmara fotográfica ou uma filmadora faria, apenas registro da imagem. Se for algo que tenha som procure apenas ouvir como um gravador. Educar a percepção sem julgamento, não ache nada apenas observe.
Uma praça ou um pequeno jardim são excelentes opções de cenários para treinar a percepção.

1º exercício: procure ver tudo que há no cenário, as árvores, flores, bancos, pistas, nuvens e outros elementos existentes.
2º exercício: ouça todos os sons existentes, o canto de pássaros, pessoas falando, o vento e tudo o mais.
3º exercício: procure sentir o vento, o sol tocando seu corpo, os pés ao caminhar, sentir os cheiros existentes.
Dedique três minutos para cada exercício.

OUVIR AS PESSOAS

Para compreender e conhecer melhor as pessoas é necessário saber ouvir o que dizem com interesse e atenção. Ao se estabelecer vínculos de empatia podemos encontrar condições favoráveis para que as expectativas que cada um tem em relação ao outro possam ser identificadas.

Saber ouvir é concentrar-se no que nos dizem sem interrupções apressadas e com ausência de julgamento. Não se trata de aceitar e sim de compreender o que nos dizem.

Saber ouvir melhora nossa percepção em relação as pessoas. Passamos a conhecê-las melhor, deixam de ser pessoas “virtuais” apenas existentes em nossas mentes. Conheceremos suas ideias, sonhos, objeções, preferências que permite, segundo nossas possibilidades e interesse, preenchermos as expectativas. Quando não for o caso de atender as expectativas poderemos tornar conhecidos os motivos, deixam de ser simplesmente desconsideradas.

AFINIDADES

Uma percepção de qualidade permite conhecer as afinidades que podem oferecer condições de cultivarmos vínculos de amizade com as pessoas. As afinidades representam identidade em interesses, ideias e correspondência entre expectativas.
Relacionamentos bem sucedidos tem apoio nas afinidades tanto para novas amizades como manter as que já tivermos.
É possível que tenhamos 1% de afinidades e 99% de posições diferentes. Se começarmos pelos 99% o relacionamento não irá prosperar, mas ao começar pelo 1% podemos gradativamente expandi-lo para 2, 3, 4%, de tal forma que tenhamos uma soma de afinidades que tornará perfeitamente confortável a convivência.
Quando a percepção é equivocada há maior probabilidade de desconhecer as afinidades e nos entregarmos às divergências capazes de gerar conflitos e inviabilizar o convívio.

VIRTUDES

O autoconhecimento pode ser considerado como um procedimento que possibilita melhorar a percepção de nós mesmos. Se dá pela observação de nossas atitudes, comportamentos e pensamentos. Não se trata de um tribunal inquisitivo instalado em nosso íntimo.
A observação revestida de uma condição de julgamento acaba por desenvolver sentimento de culpa. Quando o julgamento é substituído por observação tranquila e equilibrada desenvolvemos o senso de responsabilidade, encaramos os resultados como consequência do que semeamos na vida. Há, dessa maneira, disposição em promover a reparação dos resultados negativos. Culpa é estímulo em busca de punições que produzem sofrimentos sem, contudo, promover a reparação.
O autodescobrimento pode ser considerado como desenvolvimento de afinidades conosco mesmo que acontece pelo reconhecimento e treino de nossas virtudes.
Quando consideramos como prioridade do autodescobrimento o reconhecimento de nossos defeitos e sua repressão promovemos um relacionamento conosco semelhante àquele que temos com os outros, voltado exclusivamente para os defeitos e divergências.
Quando prevalece a percepção dos nossos defeitos e os dos outros o objetivo do relacionamento fica restrito à proposta de promover o “conserto” do outro ou de nós mesmos. Querer “consertar” os outros ocasiona desgaste nos relacionamentos, afasta-nos das pessoas, enquanto o “autoconserto” é responsável por insatisfação. O bom relacionamento conosco e com todos de nossa convivência é um processo de construção que se dá pela manifestação de nossas virtudes.

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